Conheça Kjell, o fisiologista alemão que deixou a música clássica e hoje trabalha no Ceará
Integrante do Centro de Saúde e Performance do Ceará (CESP), o agora fisiologista da base do Vovô chegou como estagiário, faz sua pesquisa de mestrado com os dados do Alvinegro e costuma ir correndo da Messejana até Itaitinga
Há memórias que têm leveza de um canto afinado. Outras, com o peso do sol para quem só conhece o frio. E há aquelas que guardam os dois, como as de Kjell Nürnberger, de 30 anos, que nasceu na gelada Dresden, na Alemanha, e chegou a viajar o mundo cantando músicas clássicas, mas foi no calor de Itaitinga, com as cores do Ceará, que ou a exercer sua verdadeira paixão: a ciência do esporte.
Filho de uma casa cheia, em que as divididas de bola eram entre os nove irmãos de mesmo gosto pelo futebol e pelo Dynamo Dresden, Kjell conta ao Esportes O POVO como alternava entre idas ao Rudolf-Harbig-Stadion e viagens com um coral de crianças. Hoje, é formado em fisioterapia e atua como fisiologista das categorias de base do Vovô.
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“ei nove anos cantando num coral de meninos que demandou muito do meu tempo, com muitos ensaios e concertos. Mesmo assim, a gente tava jogando bola toda hora, todo tempo livre. Foi cantando que comecei a viajar pelo mundo”, conta. O futebol sempre voltava. A infância não cabia numa única paixão.
Era o pai quem o levava para o estádio. “Eu tive uma infância muito boa lá em Dresden, cresci com minha família. Todo mundo bem esportivo. Meus irmãos mais velhos jogavam no Dynamo Dresden, daí também entrei no clube e jogava, mas depois fiquei só na torcida”, lembra.
O tempo o levou à Ciência do Esporte. A universidade Münster deu método e o mestrado, quase sem querer, mostrou um caminho. Surgiu a chance de estudar em São Paulo e o alemão ou a ter o Ceará, além de como um emprego, também como um projeto de pesquisa do mestrado, a partir dos dados adquiridos no trabalho com o sub-16 e sub-17.
O primeiro contato com o Brasil foi em outubro de 2021, quando foi estagiário na Universidade de São Paulo (USP). Dois anos depois, o alemão ou a morar de vez no país. Em 2024, virou estagiário do Ceará, até ser efetivado no clube.
Sol, suor, saudade e um novo idioma
O começo foi exigente. O calor era outro, sem trégua. Não era um choque de realidade, era um choque térmico. O português, um quebra-cabeça sem moldura.
“Eu comecei a falar e cheguei em casa morto de cansado por falar português. E, além disso, hoje ainda têm esses momentos em que não me sinto eu mesmo 100%, por simplesmente não poder comunicar os meus pensamentos da forma como eu queria”, conta.

Houve dias de silêncio mais fundo, a saudade apertou. “É desafiadora a diferença cultural, da língua, das saudades. E quando esses sentimentos aumentam, são muito extremos, realmente surgem pensamentos se eu deveria voltar para a Alemanha. Esses pensamentos fazem parte da adaptação. Quanto mais tempo estou aqui, menos eu tenho esses pensamentos."
“Choque cultural não teve tanto porque eu já ei no Brasil de férias e já estava acostumado com bastante coisa. Acho que foi mais um choque térmico mesmo. Eu gosto de calor, mas se você trabalha aqui no campo, algumas horas no sol cearense, isso já é outro nível”, complementa.
No dia a dia, vai muitas vezes correndo da Messejana até a cidade Vozão, em Itaitinga. Gosta de fazer percursos entre 18 e 24km e manter o corpo em atividade desde cedo.
Não fugiu da Alemanha, buscou o que lhe movia
Morar fora lhe trouxe perguntas importantes. “Aprendi a questionar o que eu quero da minha vida, pessoalmente e profissionalmente. Quando você sai da sua zona de conforto, realmente traz essas perguntas. É muito importante se desafiar. É importante, sim, ter uma zona de conforto, estabilidade, mas a vida é aprendizagem.”
Desde menino, carrega valores que hoje ainda o sustentam. Segundo ele, seu principal valor é ser honesto e verdadeiro com seus pensamentos e desejos, ter sempre respeito com as outras pessoas. E também ser otimista. “O otimismo para mim é importante. Eu estou sempre preparado para o pior cenário, mas sempre espero o melhor”.

“Por um lado, eu gosto muito da cultura alemã por conta da música erudita, a música clássica que eu sempre cantei muito. Eu cresci com isso e sinto falta. Também gosto de confiar na palavra, lá é tudo bem direto e você pode confiar. Gosto de ser direto, mas não sinto muita falta da rigidez e falta de flexibilidade. Gosto de ser espontâneo no Brasil”, compara
O fisiologista conta ainda que não “fugiu” da Alemanha, não achava ruim estar lá, apenas encontrou um novo caminho. Sente conforto nos dois ambientes. Hoje, se sente em crescimento no clube. Sobre seu sonho, respondeu que quer ser saudável até o fim da vida e um dia trabalhar como head of performance de um clube.
Rotina e carinho pelo ambiente do Ceará
O Ceará virou mais que campo de estudo. “Desde o primeiro dia, senti o clube como uma família. Todo mundo se ajuda, conversa, compartilha”. Na natureza do Estado, Kjell se encontrou: “As praias, as serras, essa diversidade daqui. Isso me encanta”. A fisiologia, área que monitora, previne e cuida da performance dos atletas, ganhou corpo com ele. Hoje, participa dos processos de ponta no clube.
Kjell chega ao clube e liga todos os equipamentos, carrega os GPS’s e antenas para acompanhar acelerações, velocidade e a parte física dos atletas. Depois, a para a revisão dos questionários dos jovens, que todos os dias respondem sobre o bem estar: como foi o sono, estado físico, dores, etc. Assim, a para a comissão técnica os ajustes necessários no treino.
Ao fim do treino, prepara os relatórios sobre tudo que foi realizado fisicamente. Os números indicam a fadiga e evolução dos atletas. Com isso, uma reunião é realizada ao fim do dia com os setores de psicologia, fisioterapia, fisiologia, nutrição e mais médicos.
Nos últimos dias, o sub-17 do Ceará disputou, pela primeira vez, um torneio internacional e alcançou a vice-colocação após ser superado nos pênaltis pelo Braga, de Portugal, no Torneio Festival D’Armor. A campanha foi avaliada como muito positiva e Kjell falou sobre a preparação.
“Foi uma preparação muito especial, trouxe vários desafios. Foram três dias seguidos com dois jogos de 29 minutos em cada tempo (40 minutos por jogo). Foi uma demanda muito alta fisicamente, mentalmente e emocionalmente para eles, muitos viajaram de avião pela primeira vez. Eles se mostraram aptos fisicamente”, conta.